Dois ou três apontamentos sobre os shows dessa noite do Popload Festival, no Audio Club
Quase todos os roadies de Iggy Pop pareciam ter mais de 70
anos
O baixista entrou vestido como um dos drugues de Laranja
Mecânica, com chapéu coco e colete de gala. O baterista saiu direto de uma
firma de demolição para o palco.
A voz de Iggy Pop é sempre inacreditável, mesmo que você já
a tenha ouvido ao vivo umas quatro vezes. Sai de alguma região entre a garganta
de Darth Vader e o recado metálico de Hal 9000, o computador de 2001 – Uma Odisséia
no Espaço.
Iggy, com o microfone nos dentes, pendurado pelo fio, caminhava
pelo palco como um doberman que tivesse se tornado dono da própria coleira. De
vez em quando, ele olhava desafiadoramente para os camarotes, fazia gestos de
quem ia mandar uma banana para os mais abonados, um John Lennon no papel de
Caronte.
Os olhos azuis de Iggy são quase imperceptíveis sob a
montanha de rugas e carões. Mas quando ele olha e aponta o dedo, parece que ele
te escolheu, dá a nítida impressão que está olhando dentro da sua mente. “Sai
dessa casca, cabrão!”. Sua coreografia de lagartixa em cima de fio elétrico
desencapado fazia a noite estremecer.
No Fun abriu a jornada. Daí, em I Wanna be Your Dog, a
segunda música, Iggy se jogou no público, um mosh para um resgate inacreditável
da segurança. The Passenger, a terceira, era já a louca ideia de uma sonoridade
socialista, incrivelmente acessível e sofisticada ao mesmo tempo, hit e anti-hit
em uma coisa só. Com essas três músicas em sequência, até o ateu mais xarope passa a ser um crente.
Iggy Pop sorria bastante, demonstrava uma generosidade
incrível para com seu público. Irônico é que, com o arrastão punk que ele promovia
(1969, Raw Power e Search and Destroy, senhores, que coisa linda!), a
playboyzada começava a achar que era punk também, entrava em rodas de pogo insanas
e fazia uma purgação doida – para, amanhã, sei lá, quem sabe, sair por aí
votando no João Dória Jr.
Mas, aos 68 anos, o que todo mundo arregala os olhos é para a
forma física de Iggy. É o último Stooge, todos os outros morreram (Steve Mackay
há alguns dias). Mas tem pinta que vai ainda muito longe nessa insanidade. Só teve
um momento, durante Sister Midnight, que Iggy puxou uma cadeira do fundo e
sentou nela, como um B.B. King do Inferno. Parecia que ia pedir arrego, sentou-se
ali e começou a cantar. Mas aí ele levantou, pegou a cadeira e a esborrachou no
chão.
Sem misericórdia, Iggy atravessou com garras de Wolverine os
conceitos de idade, gosto, padrão, fórmula, e rasgou tudo de novo. “Fucking
thank you”, ele disse para o público. Nós é que ficamos em débito, iguana.
Quem emparelhou Emicida e Iggy Pop no cast da noite foi um
doido e um sábio ao mesmo tempo. Emicida veio com um pente enfiado no cabelo
pixaim, e o saldo final do seu show foi: sorriso zero. Emicida é um
missionário, mas é também um maestro, um arranjador de show ao vivo, um
contrabandista de gêneros. Com enxerto de Preciso me Encontrar, de Candeia, e umas pitadas de Adoniran, ele arrombou a festa.
Iggy é o berro original, é o grito, arte bruta que dá
pinta de ter vindo de um tempo em que ainda nem havia ainda conceitos de arte,
de estética ou de mercado. Portanto, ele paira acima disso. Sua longevidade é um prêmio que nós nem merecemos.
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