terça-feira, 30 de setembro de 2008

OFÍCIO - Parte Um





















Não tem muito tempo isso que vou contar.
Lembro que foi numa época em que o jornalista era, na maioria das vezes, um sujeito durango como eu, vindo do proletariado, com algum conhecimento prático da realidade sobre a qual escreveria. Hoje, há uma predominância do jornalista de classe média, muitos de classe média alta. Tem muita gente que vive em São Paulo mas jamais foi até a Zona Leste, nunca experimentou um sanduba no Belenzinho, não tem a menor idéia de onde fica a Led Slay. Quando esse novo repórter, a trabalho, chega a algum lugar fora de sua rota Oscar Freire-Rodeo Drive, acha que está fazendo um favor àquela gente. Tipo o Elton John no palco do Live Aid, achando que está salvando o planeta.
Mas isso que vou contar aconteceu muito antes de os sobrenomes famosos rechearem as redações.
Eu era um foca naquela Folha do Interior.
Tinha conseguido uma motinha Garelli usada que comprei a prestação e soltava fumaça muito preta e já estava assinando reportagem, o que me tornava quase uma celebridade.
Dia de mormaço na redação, nada para fazer. Chamaram a mim e a outro foca compridão, os que estávamos coçando mais forte o saco, e inventaram algo para se livrarem da gente. Nos mandaram para o campus universitário, fazer matéria de comportamento com os vestibulandos. Fomos. Depois de azarar as meninas, posar de Hunter Thompson do subúrbio ali no centro de Humanidades, contar vantagem para um ou dois perdidos, tomar sorvete Kibon debaixo da árvore, nós concluímos: daqui não sai nada, desse mato não sai coelho.
Então, voltamos à redação e redigimos uma peça que misturava as nossas parcas anotações daquela tarde a uma prodigiosa imaginação ficcional. “Fulano de Tal esperava pela prova que definiria sua vida inteira ouvindo Roger Waters, o disco The Pros and Cons of Hitch Hiking, num walkman vermelho”.
A parte ficcional é fácil de perceber – tudo que vem depois de “Fulano de Tal esperava pela prova...” é cascatol.
A matéria foi publicada e foi um sucesso. Não era propriamente uma barbaridade, mas eu percebi a gravidade daquilo, vi que aquilo podia se tornar um hábito perigoso. Acho que foi a partir dali que resolvi me tornar um jornalista de fato. Era fácil. Tinha muita gente boa com quem aprender: velhos repórteres carcomidos que pareciam que iam se desmilinguir na minha frente; um outro tão cachaceiro quanto brilhante (morreria de cirrose anos depois); um cronista policial que lia o jornal com uma lupa, como se tivesse saído diretamente da pena de Conan Doyle.
Eram quase todos irônicos e independentes. Isso parecia regra. Ser independente era uma questão crucial. Imagino que, se um determinado tipo de poder absolutista quiser acabar com o jornalismo, primeira coisa a fazer é acabar com o espírito independente do jornalista. É só mirar no coração do jornalista.
Muito tempo depois, já sem o habeas corpus da inexperiência, lá estava eu de novo dando mole na redação e o editor-chefe mandou me chamar. Tinha recebido um convite para ir a Los Angeles, uma festa na Mansão Playboy, 50 anos da Playboy. Não sei porque cargas d’água, mas eu tinha sido escolhido. Ia para uma putaria, e ainda por cima estava sendo pago para isso, era o que diziam com ares de galhofa os amigos nos corredores.
Emprestei o livro-reportagem do Gay Talese antes para ler na viagem, A Mulher do Próximo. Achei o livro bom, bem escrito, mas cheio de coisas do tipo: “Naquela noite, a mulher de Fulano deitou-se na cama, abraçou um dos seus gordos travesseiros de pena de ganso e chorou, pensando em como ela tinha sido maltratada aqueles anos todos”.
Havia ali um esforço de pesquisa, grande talento e domínio da linguagem para descrever a formação do Império Playboy, mas eu fiquei com uma sensação estranha, como se estivesse de novo diante daquele lide “Fulano de Tal esperava pela prova que definiria sua vida, ouvindo Roger Waters num walkman vermelho...”.


CONTINUA

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

GIGANTE BRAZIL


gigante brazil é o cara mais alto aqui nessa foto, parecidíssimo com o itamar, o cara de braços abertos










gigante brazil morreu hoje.
era o batera da isca de polícia, banda do itamar assumpção.
esteve na gang 90.
tocou com meio mundo, começando lá nos anos 1970 com jorge mautner.
tinha esse nome porque era um negão enorme, era forte e tinha trovões nas mãos.
eu o vi pela primeira vez tocando com itamar num palco armado em cima do lago igapó.
era estudante em londrina.
depois, eu o vi acompanhando meio mundo em são paulo, no centro cultural, nos sescs, em todas as levadas em que o requisitavam.
tinha 56 anos, morreu dormindo, o jorge luiz de souza.
incompreensível: muitas vezes que passei de carro ali pela vila madalena, pelas imediações do empanadas, eu o via caminhando pela calçada e pensava: caralho, o gigante não envelhece nunca?

sexta-feira, 26 de setembro de 2008

PÁSSARO REPULSIVO


o dodô, que não é o meu amigo haroldo













resgatei quase na boca do lixo as provas de um livro muito bacana, o canto do dodô, de david quammen (companhia das letras).
imagino que esse livro não deva ter tido grande sorte, no máximo uma sinopse.
ninguém sabe se o pássaro dodô cantava – um viajante que foi à ilha Maurício em 1638 contou que ele grasnava como um filhote de ganso (a última vez que um dodô foi avistado foi em 1662, por um náufrago holandês que chegou à ilha depois de seu navio ir a pique numa tempestade)
quammen defende que a extinção do pássaro dodô é representativa da modernidade.
a maioria das espécies hoje extintas viveram em ilhas - desde 1600, 171 espécie e subespécies de aves tornaram-se sabidamente extintas. desse total, 155 viviam em ilhas, o que dá mais de 90%.
se se considerar o fato de que apenas 20% das aves conhecidas vivem em ilhas, dá para ter uma idéia do tamanho da barbaridade.
o bicho numa ilha é presa fácil.
os homens em ilhas são presas fáceis.
o pássaro dodô sumiu e virou lenda. mas quem é que quer virar lenda?
um holandês chamado van neck publicou um relato, em 1601, que descrevia o pássaro.
“nós as chamávamos de walckvögel, que quer dizer pássaro repulsivo em holandês”. será que tem alguma relação com o nome da apresentadora?
o bicho tinha carne dura e rija, que só “estômagos sebentos” poderiam apreciar, relata van neck.
o mapeamento do surgimento e desaparecimento do pássaro dodô é um mero pretexto para quammen falar da própria natureza humana. ele mesmo como um cientista iniciante caçando formigas é algo de morrer de rir. lembra os momentos mais mal humorados de malinovski.
"minha tarefa em angel de la guarda, a incumbência ridícula reservada a um novato, é fazer um levantamento da variedade e abundância de formigas", ele conta. "claro, terei o máximo prazer, respondi, sem antever o tédio de tentar coletar formigas numa ilha tão ressequida quanto esta".
seu estilo é envolvente, sedutor. vejam como ele descreve uma de suas fontes:
“carl jones é um galês alto e sarcástico, com um fraco por piadas infames e uma dedicação quase maníaca à vida silvestre de maurício. sua reputação se estende muito além do sudoeste de Maurício, mas eu acabo de conhecê-lo e não sei o que esperar”.
quammen menciona vários cientistas e estudos, incluindo o trabalho de barbara zimmerman sobre as rãs da amazônia (há também um capítulo sobre o ouriço da amazônia).

terça-feira, 23 de setembro de 2008

KASSABARTACKMIN

Metendo de novo a colher na panela suja da política paulistana.
“A quem serve a briga Kassab-Alckmin?”, perguntam os Órgãos Oficiais do Partido, querendo mostrar-se preocupados com a “limpeza” da eleição.
Santa ingenuidade! Não se trata de “briga”, mas do futuro político desses dois personagens. Aquele que não chegar ao segundo turno pode pendurar a chuteira – especialmente se for o ex-governador, que já foi até candidato a presidente da República com apoios irrestritos, e perdeu de lavada. Kassab ainda pode viver alguns anos como presidente do Centrão na Câmara de Vereadores (mas só daqui a 4 anos).
Quem conhece um pouco de pesquisa sabe que as intenções de voto para Marta, Alckmin e Kassab têm perfis bem definidos.
Marta e Alckmin têm aquilo que se chama de “voto sedimentado” – ou seja: seus eleitores têm alguma convicção e motivos para votarem neles. Alckmin tem mesmo aqueles 20% (e não 27 ou 28%). Estava caindo porque uma parcela do seu eleitorado fôra seduzida pelo atual prefeito.
Kassab é o fenômeno publicitário gestado a partir de um coquetel de mídia, começando por uma inserção absurda de comerciais na TV (além do uso da máquina, é claro; ou não é uso da máquina a multiplicação de canteiros novos ajardinados nos cruzamentos das ruas de São Paulo? ou não é uso da máquina convocar funcionários públicos para interferir em pesquisas eleitorais?).
A intenção de voto em Kassab é instável e migratória, como a fidelidade a um novo sabão em pó – tanto é que Alckmin conseguiu deter seu avanço.
Mas quem é que os Órgãos Oficiais do Partido preferem?
Preferem Kassab, é óbvio. É dócil, servil, bobo e não parece ter pretensão política. Apenas faz o que lhe mandam. O sonho de todo político manipulador.
Ninguém prestou atenção, mas diretores de institutos de pesquisa consideram que Alckmin tem até maiores chances de chegar ao segundo turno – e fatores técnicos, como o desconhecimento no número de urna de Kassab, podem ajudar Mr. Chuchu com um ou dois pontos fundamentais. Seria uma vitória aos 44 do segundo tempo.
Se Alckmin passar, dá sobrevida a seu capital político. Terão de negociar com ele, e não o contrário. Porque ele tem lá suas chances contra Marta, e será a grande pedra no sapato de Mr. Burns.
Definir isso que está acontecendo apenas como “briga” é como alguém gostaria que ficasse estigmatizado esse embate. Dá uma noção de infantilização da contenda. Na realidade, os dois dão suas últimas cartadas. Kassab que fique esperto, porque se não bater de volta, não passa.
Da minha parte, estou interessadíssimo nessa “briga”, porque é daí que saem as informações sobre os jogos subterrâneos do poder na cidade. "Cavalheirismo" aqui me cheira a acordão.

AVE, ZABÉ


zabé da loca e seu conjunto põem fogo no pátio da igreja do seminário, em olinda











as 84 anos, seus olhos com a íris embranquiçada miravam os afrescos no teto da igreja do seminário como se olhassem para além da nave. não ouve mais quase nada do que lhe dizem, mas quando seu segundo pifeiro, rivers douglas, começa a tocar, ela já se encaixa no acompanhamento, o sopro bem fraquinho, o corpo muito franzino se mexendo como se seguisse um cão-guia.
é zabé da loca, que tem esse nome porque viveu numa gruta (ou "loca") no sertão da paraíba durante 25 anos.
criou os filhos na caverna.
gosta demais de uma cachaça, predileção que tem de ser barrada de vez em quando.
ela toca o pife, a flauta de pvc que é característica das bandas de pífano nordestinas.
eu a vi e a fotografei em pernambuco, há duas semanas.
ela e seu grupo começaram tocando no interior da igreja, e depois terminaram no pátio externo, com a platéia fazendo roda em volta do grupo.
boa parte do repertório era dela mesma, mas ela também tocou luiz gonzaga (sala de reboco) e até o hino nacional brasileiro.
nada menos que emocionante.
bom, a notícia é que, no dia 7 de outubro, às 17h30, no theatro municipal do rio de janeiro, zabé da loca vai receber, das mãos do pernambucano luiz inácio lula da silva, a comenda da ORDEM DO MÉRITO CULTURAL.
medalhas não dão de comer a ninguém, mas se tem alguém que merece uma, é zabé.

segunda-feira, 22 de setembro de 2008

MEG BOCA DE CAÇAPA


Era tão feia, mas tão feia, que (diz a lenda) quando sorria para alguém (e ela raramente sorria), imediatamente nascia uma verruga na bunda da vítima. Seu apelido, segundo historiadores, era Meg Boca de Caçapa.

A austríaca Margarete Maultasch (1318-1369) foi a última Condessa do Tirol, da dinastia Meinhardiner. Era filha de Henry, duque de Carinthia e Conde do Tirol, o qual ela sucedeu em 1335.

No princípio do século 14, quando era ainda apenas um bebê, já tinha recebido as primeiras propostas de casamento. Seu dote, apesar da feiúra crônica, deixava babando os nobres da Europa.
Nos arquivos do Estado, achei esse texto sobre Meg publicado no Jornal da Tarde em 16 de outubro de 1969:

“Com 12 anos, Margaret casou-se com um príncipe (descobri depois que era John Henry, da Boêmia, filho de John, Conde de Luxemburgo, em 1330). Um dia, cansou-se dele: o marido, ao voltar da caçada, encontrou fechados os portões do castelo. Margaret, do alto de uma torre, gritava que não queria mais vê-lo e fazia um convite: ele deveria deixar o País o mais depressa possível”.

O segundo marido era filho de Luis, o Bávaro. O temerário Luis V da Bavária ficou noivo de Meg, mas para casarem ela tinha de cancelar seu primeiro casamento. A solução era fazer o Papa cooperar. Até que tudo ia bem: três bispos foram enviados ao Tirol para a missão de anular o compromisso, mas na viagem, no Vale do Meran, uma avalanche matou um dos bispos. Os outros dois bispos acharam que tudo aquilo era um castigo dos céus e fugiram.

Então, um simples capelão foi escalado para anular o casamento e Meg enfim casou, sendo depois excomungada pelo Papa Bento 12 e protagonizando o primeiro “casamento civil” da Europa. Foi na propaganda eclesiástica que ela recebeu o apelido Maultasch (que resulta em algo parecido com o nosso “Boca de Caçapa”).

Mas, logo logo, em 1334, ela também se cansou do segundo marido e até do filho que tiveram, Meinhard, e há indícios de que os tenha envenenado, tornando-se rainha absoluta da Boêmia e do Tirol. Logo a seguir, pressionada pela insatisfação do povo e da nobreza, unidos, ela abdicou.

Dizem que Meg era voraz: papava jovens camponeses fortes e bonitões oferecendo-lhes presentes e favores. Foi a primeira mulher cuja figura pública era imediatamente associada a poder e crueldade, mas o que será verdade nessa história? O que é verdade é que ela tinha uma bocarra, um duto capaz de relegar ao papel de canudinho o bocão de Cicarelli.

Meg Boca de Caçapa ficou tão famosa que foi pintada por Leonardo da Vinci e Quentin Matsys (retrato acima). Seu retrato foi modelo para o personagem A Duquesa, que o ilustrador Sir John Tenniel fez para Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Lion Feuchtwanger baseou-se em sua história para escrever o romance A Duquesa Feia.
Um dia sonhei escrever um romance semificcional sobre a vida de Meg, A Feia. Poderia ter começado assim:

"Era um castelo que não tinha espelhos, nem lagos, nem banheiras, e os vitrais eram de vidro transparente. Não tinha prataria: todos os pratos eram de louça branca. Nada refletia imagem alguma no Reino de Meg, a Feia, porque tudo que ela não queria na vida era enxergar-se inadvertidamente". Eu colocaria palavras na boca dos seus amantes, como Elio Gaspari teria feito com Joaosinho Trinta ("Pobre gosta é de luxo. Quem gosta de miséria é intelectual"). Por exemplo: diria que foi naquela época que se inventaram frases como: "Só vou se puserem um travesseiro na cara dessa mulher". Ou então: "Se me virem conversando com Meg Boca de Caçapa, podem apartar que é briga".

Desisti, mas compartilho com vocês o meu terrível bloco de anotações.





publicado originalmente no blog antigo em novembro de 2006

sexta-feira, 19 de setembro de 2008

MORRO DA FORMIGA





















o tempo das amoras chegou no morro da formiga.
os pés estão carregados em ibiúna.
estive lá anteontem de manhã para levar ração para as cachorras (não confundir com as cachorras do dj marlboro; as minhas três não têm rabo tão grande...).
bueno, lá estava eu e o frio tava brabo e eu vi de passagem a antiga caseira já acordada na janela da casa em que mora, e que tem parede de pau-a-pique.
ela mora a 50 minutos de são paulo, mas me contou que nunca veio a são paulo.
ela não se importa com o novo shopping cidade jardim, ela não entra na fila do espaço unibanco, ela jamais vai morrer atropelada na marginal tietê (que nem o estudante que parou ontem para ajudar um outro motorista em apuros e foi atropelado por um caminhão, e ninguém prestou socorro).

todo mundo me diz sobre meu refúgio:
uau, que lugar plácido! uau, que lugar sem neuras! uau, que lugar cheio de paz!
bem, tem também um componente meio twin peaks, devo confessar...
uma vez teve um malandro ali na região que andava invadindo, barbarizando, ameaçando. tinha uma arma, é claro.
ele teria entrado também no meu casebre, e queimou o sofá no meio da sala. foi o que me contaram, eu só cheguei com o prejuízo sacramentado e levei um tempão para limpar tudo, para raspar a fuligem, repintar.
um dia, me contaram que ele tinha dado um safanão num velhinho da região.
e que teria sido essa a gota d'água: meia dúzia de peões se juntou, esperou num caminho no mato por onde passava o elemento barbarizante e pegou o cara de surpresa.
mataram-no de paulada.
gelei de ouvir essa história.
todo mundo pensa que o sertão é lá, mas o sertão também é aqui.


e o novo vizinho já mostrou suas credenciais: cortou uma puta árvore nativa gigante de aroeira. quase todas as aroeiras que havia ali na vizinhança já foram cortadas.
péssimo.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

ANTIPROVÍNCIA


jazzistas celebram miles davis em são paulo












a natureza de são paulo é boa.
quer saber por que são paulo nunca fica complexada com sua feiúra, com seus prefeitos vilanescos, com seus rios fétidos, com sua burguesia brega?
por que são paulo não se deixa abater pela voracidade especulativa de seus ricos, a tendência sadomalufista?
é porque a natureza de são paulo é superior a tudo isso.

falo da cidade que pensa, que inventa, que critica e que cria.
falo de sua natureza autopurificadora.
falo da cidade que é artesanal no meio da cidade industrial.
contra a vocação vilaolímpia, os baixos da rua augusta.
contra a arquitetura monstruosa, osgemeos pintando nas paredes do cambuci.
são paulo é são paulo quando afirma sua vocação antipadronizadora.
é legítima quando os meninos de 20 anos fazem dos bares da parte baixa da rua augusta um oásis de originalidade e pureza.

contra os fazedores de bulevares, todo poder aos bares moscas-fritas.
essa cidade está acima de toda caretice, afirmando a todo momento a superioridade antiprovinciana.

digo tudo isso a propósito de duas coisas que presenciei no final de semana:

COISA 1. a apresentação da peça aos ossos que tanto doem no inverno, de sergio mello, com mário bortolotto e nelson peres.
no espaço satyros 1, no coração da praça roosevelt.
o teatro de sangue que se insurge contra o teatrão sem alma.
o teatro que se faz apenas porque é preciso ser feito.
e, além de tudo, o ator que depois da peça sai encurvado pela calçada com seu coturno sem cadarços, procurando algum alívio na mesa de latão (não é um texto do qual se sai impune).

COISA 2. um tributo a miles davis que assisti no bar mais bacana de são paulo, nos fundos de uma garagem. melhor que os bares do village.
nas imediações da benedito calixto.
os músicos que tocam para quem está de fato a fim de ouvi-los.
os músicos que tocam sem saber se haverá paga, ou quando haverá paga.
a platéia que ouve porque ama o que ouve, e que não está ali apenas para ser vista.
(não dou o endereço porque, se as revistas semanais descobrirem, o lugar está acabado, mas se os amigos perguntarem eu conto).

sexta-feira, 12 de setembro de 2008

CECÍLIA


cecília no dia do seu casamento













Muitos crêem que Cecília inventa a maioria das histórias que conta, inclusive eu. Sou sincero: é muito protagonismo para ser tudo verdade.
Mas um dia eu caí do cavalo: ela me contou que tinha dado uma canção para Jorge Mautner, Sapo Cururu, e eu duvidei. Um dia, fui cobrir um show de Mautner no CEU Cidade AE Carvalho, durante a Virada Cultural, e ele tocou Sapo Cururu. Quando terminou, Jorge disse: “Essa música quem me apresentou foi a Cecília G. em 1959”.

Cecília sempre causou grande curiosidade. Em visita ao jornal, jovens estudantes eram levados à mesa dela e ouviam deliciados as dúzias de histórias contadas com rara erudição pela senhora miúda, de cabelos ralos, olhos brilhantes e um tom de fina ironia na voz.

Ela deixava as pessoas meio assustadas quando falava de seus planos para a própria cremação, as músicas que queria que tocassem no dia de sua morte. Mas é tudo exagero shakespeareano, Cecília é jovem, tem apenas 72 anos (nasceu em 29 de junho de 1936 e possui “uma saúde de vaca premiada”, segundo lhe lembra o amigo Rolf).
Estava havia 34 anos na empresa – entrou para o jornal em outubro de 1975. “Era para ficar só três meses”. Estava no jornal no dia da mudança da Rua Major Quedinho para o bairro do Limão. Estava na redação quando saiu o famigerado Pacote de Abril do ditador Geisel. Trinta e quatro anos. É uma vida inteira. Foi casada com o famoso ator, dramaturgo e diretor G.G., e mesmo separada por décadas dele, era ele ainda o epicentro de suas histórias e de seu fabulário.

Ela conta que começou não como repórter, mas como tradutora da editoria de Internacional. Traduzia do inglês, italiano, espanhol e francês, porque os correspondentes naquele tempo escreviam nas suas línguas pátrias (Rocco, em italiano; Gilles e Issa, de Paris e Beirute, em francês; Novaes, de Madri, em espanhol; John A., dos Estados Unidos, em inglês). “Eu não traduzia, já fazia textos jornalísticos ‘no tamanho’, e, modéstia à parte, era tão boa que fiquei nisso uns anos, até me deixarem escrever ‘de verdade’”.
Sua primeira reportagem foi a cobertura da vinda do Balé de Moscou ao Brasil. A companhia se hospedou no Hotel Jaraguá, que ficava então em cima do jornal, na Major Quedinho. “Não tinha quem entrevistasse o pessoal; como eu arranhava russo, me mandaram – e foi o diabo arrumar um nome printável para a prima ballerina, Vagina Seminova”, ela conta, com o deboche costumeiro.

Terça-feira foi um dia triste. Cecília deixou a empresa. Trabalhou o dia todo, escreveu suas colunas, deixou algumas fechadas. Organizou arquivos e fotos, limpou as gavetas, colocou em 2 pen-drive aquilo que queria levar do computador. Deu uma mãozinha numa tradução que alguém lhe pediu. Despediu-se das pessoas com a voz meio embargada. “Plus ça change, plus c'est la même chose”, ela me disse, citando O Leopardo.
Um ou outro confundia sua vocação discursiva com algo de ranzinza, e sobre ela pairava uma odiosa suspeita de ser cleptomaníaca, nunca comprovada. No último dia, foi aplaudida de pé por toda a redação. Tirou fotos com os mais jovens. Contou piadas, recomendou leituras. No Natal, estará em Punta del Leste com os filhos e os netos.

terça-feira, 2 de setembro de 2008

O PROFESSOR ALOPRADO - PARTE TRÊS

Na lista de “erros crassos” que Caetano levantou a respeito do meu texto (desesperado esforço de me desqualificar como analista do seu trabalho), alguns itens dispensariam comentários.
É o caso de ele ter assinalado que a palavra necrópsia, como eu grafei, estaria errada: não seria acentuada. Equivoca-se de novo: é uma palavra com dupla prosódia (como biópsia ou biopsia; autópsia e autopsia; boemia ou boêmia; catéter ou cateter). O Vocabulário Ortográfico da Academia Brasileira de Letras poderia ajudá-lo em suas tarefas.
Entretanto, nesse ponto da “necrópsia”, ele entendeu aquela que talvez fosse a ironia mais cruel do meu texto (não sou cruel por natureza, mas confesso que me excedi aqui): a bossa nova doente que eu descrevo está desenganada, é na verdade moribunda, e a escalação de dois totens da MPB (que não são os mesmos Roberto e Caetano do show, mas seus mitos) destina-se a dissecar o seu cadáver. Estão a postos ali no palco, esperando que ela desencarne.

O cantor aferra-se a picuinhas para tentar readquirir seu orgulho ferido. Como aqui, citando-me:
Roberto e Caetano fizeram de tudo para Tom Jobim: bajularam-no, superlativaram-no, choraram-no. "Como o autor justificaria o uso da preposição 'para' com os verbos (seguidos de pronomes átonos) que vêm depois dos dois pontos?", indaga o mestre.
Ora, professor, é fácil: é só usar um pouco de perspicácia (algo que qualquer leitor mediano consegue) para saber que há um verbo oculto ali, um verbo subentendido. Algo que se deduz facilmente pelo contexto. Eu poderia sugerir a Caetano alguns verbos para seu uso pessoal ali: “ordenhar”, “puxar o saco”. Mas é melhor não fazê-lo.

Mais adiante, Caetano pergunta: “Afinal o tom criticado era de solenidade ou de paródia? E ‘gesto imitador’ vem para ilustrar uma ou outra? O período resulta incompreensível”.
Não vejo por que me estender muito aqui: a paródia a que assistimos naquela noite tornava-se ainda mais patética à medida que os dois medalhões mostravam-se mais solenes e compungidos. Tínhamos, então, uma paródia solene, algo aberrativo enquanto expressão, mas assustadoramente real.
A imersão apressada e desconexa na obra de Jobim só podia dar nisso. Creio que Chico Buarque teria demonstrado mais sensibilidade e presença de espírito ao tratar de Jobim, cuja obra ele conhece mais profundamente do que Caetano e Roberto.

No mais, Caetano não gostou de naftalínico, eu também não gosto de djavanear. Neologismos nem sempre agradam a todos.

Tem muita baboseira em seu arrazoado, trata-se de procurar o famoso pêlo em ovo. Há dois problemas reais (por conta do ritmo industrial de um jornal, às vezes temos pouco mais de duas horas para redigir; Caetano teve uma semana para cozinhar seu ressentimento).

EM TEMPO – Mais uma coisa: o jornalismo americano, que mr. Veloso idealiza tanto (sempre se deu muito bem com os jornalistas do New York Times), aquele jornalismo que não cometeria o erro de publicar um texto como o meu, em sua opinião, é o mesmo que acobertou durante anos o trabalho sujo de Jayson Blair e Janet Cooke. Entre outros.


CONTINUA...

O PROFESSOR ALOPRADO - PARTE DOIS

É compreensível o desprezo que Caetano tem pelo jornalismo musical, que ele definiu lá atrás em seu blog como “o lixão da imprensa”. Ele talvez se refira à bovina concordância com que a maioria da imprensa musical, nos últimos tempos, acena para com qualquer coisa que ele, Caetano, diga, faça ou fale. Ele é adulado por essa maioria (pareceu-me até que tinha como favas contadas que desfrutava de unanimidade). Consequentemente, assustou-se com a prova da existência de uma minoria que é independente e não se sujeita ao seu cabresto de influências.

Modestíssimo, diz que escreve em resposta à minha crítica porque se preocupa com “a afirmação das glórias nacionais” (ele, é claro, incluindo-se nessas glórias). Glórias nacionais não podem ser questionadas, n’est-ce pas?
É tudo muito engraçado, de fato. Morro de rir com a confusão que ele faz entre o jornalismo de Folha, Estado e Veja. Ele tem na cabeça uma imagem cristalizada do que sejam alguns profissionais dessas empresas, confunde esse comportamento individual com o de toda a empresa e tenta enquadrar todos nessa sua expectativa. Infelizmente para ele, não estou em sua cartilha. Meus editores não pensam que são seus amigos. Nem tampouco sou um jornalista da categoria outdoor de Times Square. Nem queria polarizar com ele, tenho trabalho a fazer.

Mas não posso deixar de ler nas entrelinhas do teatro de Caetano. Ele não é tão inofensivo assim, não está apenas brincando de clown tropicalista. Seu jogo é um pouco mais pesado. Ele não se contenta somente em tentar desqualificar minhas rústicas ferramentas profissionais. Vai além: pede minha demissão duas vezes. Primeiro, sugeriu que meu editor tome providências a meu respeito, que não me deixe escrever com tanta liberdade. Depois, que os leitores do jornal no qual trabalho façam Justiça em seu nome (talvez pedindo minha cabeça?).
“Nos Estados Unidos, um texto semelhante poderia provocar a perda do emprego”, diz o valente herói tropicalista na segunda parte. É uma deslealdade: eu não poderia sugerir o mesmo ao banco que o contratou para fazer um concerto de segunda classe, poderia?

Ele se mostra arrogante e presunçoso. Um autêntico coronelzinho da MPB, cercado de vassalos de toda natureza, prontos a tomar suas dores. Sugere que já fez isso anteriormente, que já pediu cabeças de desafetos, e é bem provável que tenha sido bem-sucedido. Confia que sua poderosa rede de contatos de amigos apresentadores, amigos editores, amigos colunistas e amigos blogueiros lhe assegure uma confortável unanimidade.

Caetano Veloso preza tanto a democracia que, no mesmo blog de onde dispara suas intempestivas setas envenenadas, não permite que sejam postados comentários que lhe sejam desfavoráveis. Todo mundo o ama naquele pedaço. Mas, mesmo no fabuloso mundo de Fahrenheit 451, algo pode fugir do seu script.



Digo com convicção aos meus 7 leitores: não se preocupem, não esqueci de responder ao restante do Manifesto Gramatical do Professor Raimundo Caetano. Depois do almoço, CONTINUA...

O PROFESSOR ALOPRADO - PARTE UM

Há uma semana, Caetano Veloso me achincalha em seu blog por conta de crítica desfavorável que escrevi sobre seu show com Roberto Carlos, semana passada, no Auditório do Ibirapuera.
Certamente crê que, no ataque, conseguirá neutralizar a impressão negativa que a crítica tenha produzido. “A picuinha me redimirá”, deve pensar o perspicaz cantor e estadista. Caetano tem apenas 66 anos, mas demonstra sinais de senilidade precoce.
Começou intempestivamente, me xingando. Primeiro, achei que seu destempero o tornava um tanto frágil e patético, e relevei. É uma dupla armadilha esse tipo de coisa: se respondo a barbaridade dessa natureza, vão dizer que quero polarizar com a vaca sagrada da MPB (e tenho alergia a publicidade); se não respondo, ele acaba sedimentando sua verdade particular, que é fazer pensar que estou admitindo que vi o que não vi.

Ontem, Caetano voltou à carga. Agora, veio vestido com as armas de Guardião da Gramática. Aprendeu até a colocar trema corretamente em “qüinqüênio” – um progresso considerável para quem grafava “trexo” em vez de trecho, que escreve “veses” no lugar de vezes, e acha que “hilário” é o mesmo que “hilariante” (quando o primeiro é um nome próprio, e o segundo um adjetivo), e que confunde Pasquale Cipro Neto com um certo "Pascoali". Vejam: não estou colocando em suspeição a origem de seu manifesto gramatical, apenas achando engraçado.

Instalado em sua cadeira na Escolinha do Professor Caetano Raimundo, ele explica que tenta exibir sua faceta de mestre das “gramatiquices” para a ex-mulher empresária. Diz que um termo que cunhei, naftalínico, é um neologismo incorreto. Prefere “naftalênico”, porque naftalina é marca, e sua origem está no naftaleno, etc e tal. Imagino Caetano, travestido de scholar, aconselhando os Paralamas a mudar o nome de Loirinha Bombril para “Loirinha lã de aço”, argumentando que Bombril é o nome comercial da coisa.

Confesso que achei muita graça no seu tom de corretor de provas do Enem: “Na segunda frase temos logo uma formulação torta: ‘é um efeito sintomático’. Mas isso é problema de estilo.”
Bom, se Caetano Veloso aponta um problema de estilo no meu texto, devo curvar-me. É um artista que está em seu auge criativo, que produz uma poesia tão fascinante quanto os versos adiante: “Falta o mundo ver assim/ Água de Kassin lava a Nova Capela/ Eu amo PUC e a gíria dos bandidos/ Fundição Progresso/ Eis a Lapa/ Lula e FH/ Amo nosso tempo/ Em ti”. Uau! Logo se vê que estilo não tem lhe faltado em sua produção recente: “Não tenho inveja da menstruação, não tenho inveja da adiposidade, só tenho inveja dos orgasmos múltiplos”

E prossegue o nosso vigilante da língua: “Já as vírgulas que separam a expressão ‘ao vivo’ são mais do que desnecessárias: constituem erro, uma vez que “ao vivo” tem o mesmo papel de adjetivar ‘homenagem’ que ‘vítrea’ tem de qualificar ‘imagem’. Trata-se de uma mania de usar vírgulas em excesso, coisa que tem prejudicado tantos textos jornalísticos (e mesmo literários) entre nós. Há também imprecisão (e mau gosto estilístico) em chamar ‘a memória’ de ‘imagem vítrea’ (por quê? porque se tratava de projeção de vídeo? será que alguém pensa que vídeo é vidro? ou apenas quer dizer que imagens na memória são de vidro?).”
Caetano está enganado, como enganado está o seu professor de português (ou o antropólogo “ixperrto” de plantão que copidescou isso para ele). Vítrea, se ele tivesse se dado ao trabalho de ir a outra fonte, talvez o professor Houaiss, significa também “translúcida”, e é nessa acepção que é empregada aqui. Nem toda imagem é translúcida. Aquela era.
Caetano me perdoe pela franqueza, mas eu trocaria todas minhas vírgulas por um bom show naquela noite, e acho que teria feito um bom negócio. Mas as vírgulas estão no meu texto, e infelizmente ele vai ter de engoli-las.



CONTINUA...

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

NOLA NÃO! NÃO DE NOVO!


não sei se dá para ver, mas é um arco-íris que pintou no céu de new orleans depois de uma chuvarada, em junho (clique na foto que ela amplia)








pode parecer meio blasé isso, mas tô rezando por nola.
nola é como new orleans é conhecida. estive lá nos últimos dois anos, para o jazzfest (a última vez há pouquíssimo tempo, em junho). vi stevie wonder e the roots (cujo MC, questlove, produziu o melhor disco que entrou no meu toca-discos esse ano, o novo de al green), entre outros.
o furacão gustav está chegando, já evacuaram até a bourbon street.
acho que só conheço uma cidade parecida com new orleans no mundo: salvador.
a mestiçagem e o melting pot culturais deram num mundo à parte (dizem que havana e santiago de cuba são parecidas, mas não as conheço).
negros de nomes franceses e olhos verdes, mulatas parecidas com as que vi na fila do show da tereza cristina na lapa, um casario de balcões de ferro trabalhado, espetáculos de música em cada esquina, meninos que formam bandas funk que tocam como se tivessem mil tim maias nos calcanhares.
new orleans não é uma cidade qualquer.
mandinga para afastar o furacão, que um dia eu espero voltar àquela terra.